Escravização negra e indígena: audiência pública debate ressignificação de homenagens no RS
Solicitação de audiência havia sido entregue à deputada através de um documento assinado por 42 entidades. Foto: Celso Bender/ Agência ALRS
25 mar 2022, 15:49 Tempo de leitura: 6 minutos, 52 segundosProposta pela deputada estadual Luciana Genro (PSOL), uma audiência pública sobre a ressignificação de símbolos ligados à escravização de negros e indígenas foi realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa nesta quinta-feira (24/03). A solicitação havia sido entregue à deputada através de um documento assinado por 42 entidades.
Essa mobilização foi iniciada pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos e pelo movimento Vidas Negras Importam, com o objetivo de rediscutir e reinterpretar as homenagens feitas a figuras históricas que foram escravocratas ou apoiadoras da escravização no Brasil.
Luciana Genro destacou que ressignificar é, também, rediscutir de forma crítica a história oficial que é contada. “Não raramente a história oficial exalta símbolos de violência e opressão, legitimando essa memória coletiva. Quando discutimos a discriminação e a opressão contra a população negra e indígena nós vemos a importância e a necessidade desta reparação simbólica com toda uma população,” disse.
A deputada sugeriu que, enquanto Comissão, se recomende que as Câmaras de Vereadores façam essa discussão, uma vez que os municípios podem criar ações mais concretas para ressignificação destes elementos, como projetos de lei e audiências públicas para debater formas de buscar a ressignificação das figuras que estão sendo exaltadas em praças e ruas, por exemplo.
Movimento negro protagoniza luta
A vereadora do PSOL Fran Rodrigues contou que seu mandato protocolou um projeto de lei, em Porto Alegre, sobre os monumentos que homenageiam escravocratas. “Precisamos debater não necessariamente a remoção, mas a ressignificação destas homenagens. Me proponho a retificar o PL para debater a ressignificação destes monumentos junto com as entidades representativas, comunidade e prefeitura,” afirmou a vereadora.
Pelo Movimento Negro Unificado, Gleidson Dias explanou sobre a importância de rediscutir o conceito de homenagem e a possibilidade simbólica dentro de um estado democrático de direito. “Estamos aqui iniciando um processo de mudança para discutirmos com a sociedade gaúche. Queremos saber se ainda, em 2022, é possível juridicamente que símbolos possam homenagear escravizadores e torturadores,” questionou.
Gilvandro Antunes, em nome do Movimento Vidas Negras Importam, explicou que a proposta de ressignificar considera a influência do passado não somente no presente, mas também no futuro. “Quando se elege determinados povos como nome de prestígio ou não, homenageando nossos algozes e exploradores é para mantê-los – assim como seus valores – por perto. Queremos que pessoas, símbolos, culturas que hoje se tem como distante estejam tão perto que tenham garantido na história o lugar da lembrança, da memória e da homenagem”, disse.
Ubirajara Toledo, do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos, disse que a audiência pública era um momento histórico para o conjunto das lutas do movimento social negro e de todos que lutam pelo reconhecimento dos seus direitos.
“Nós estamos hoje celebrando a vida, trazendo esses elementos indispensáveis para a construção do Brasil. Não vivemos no passado, o passado vive em nós e em apenas 522 anos do nosso país, mais de 300 anos foram de negação da nossa condição humana. A nossa luta não é pouca! O capitalismo tem na exploração e na escravidão os seus pilares e temos, sim, que lembrar dos anos de chumbo, mas também ressignificar símbolos de quem nos torturou,” declarou.
O cacique Cláudio Acosta, do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, lembrou que muitos nomes indígenas em ruas, por exemplo, são utilizados sem o devido respeito e conhecimento sobre a história dos seus povos e que o debate precisa ser ampliado.
Instituições fazem parte desse debate
Adriângela da Silva, chefe do Departamento de Promoção de Igualdade Racial da prefeitura de São Leopoldo, destacou que esses símbolos geralmente construídos com ares heróicos tendem a ser um simulacro da verdade, e não a verdade como é e deve ser apresentada.
“Quanto maior o debate e garantia desse direito à memória, melhor será a ação para qualificar os espaços públicos com essas histórias. Qual é a história e como nós vamos contar? É preciso problematizar e contextualizar cada personagem para estabelecer pontes de aprendizado. Olhar para o passado, ressignificar o presente para construir o futuro,” afirmou.
Representando o Conselho Estadual de Direitos Humanos, a defensora pública Cristiane Johan lembrou da luta incansável do órgão na defesa da dignidade humana, que em 2021 ouviu vários representantes dos movimentos negros sobre essas homenagens a personagens históricos que escravizaram negros e indígenas.
“Compreendi o quanto essa questão diz respeito a todos nós. Somos todos responsáveis pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Que valores estamos transmitindo homenageando essas figuras? Que valores são reforçados? Quando falamos em ressignificar estamos falando em olhar de outra forma para o mundo e tenho certeza que esse é o caminho que devemos trilhar,” reforçou.
O defensor público Mário Heigantz, da Associação dos Defensores Públicos do Rio Grande do Sul, destacou a necessidade da empatia com essa pauta, que é de extrema importância para a luta antirracista. Lembrou que pessoas negras estão entre os maiores índices de intolerância religiosa, de violência policial e encarceramento no Brasil.
“Precisamos estudar materialismo histórico sim, mas mais do que isso precisamos de momentos como esse, que utilizam o conhecimento, contando a história do oprimido, podendo pensar ações concretas que produzam efeitos reais. Se conseguirmos avançar e ressignificar esses símbolos, possivelmente pessoas negras sofram menos violência do que sofrem no nosso país,” afirmou.
A Professora da Faculdade de Psicologia da UFRGS e do Núcleo de Extensão e Pesquisas Antirracistas e Anticapacitistas, Raquel Silveira, lembrou do que diz a teoria do privilégio da branquitude, que compreende que o racismo produz subjetividades e hierarquiza vivências, impossibilitando escutas. “Esse movimento é fundamental. Importa muito, do ponto de vista psíquico, a possibilidade de se reconhecer também em um lugar de sabedoria, além de não ser mais permitido a valorização de personagens de pura violência,” declarou a professora.
Por fim, representando a Secretaria Estadual de Justiça, Bibiana Waquil reiterou que a formação da identidade brasileira foi fundada no apagamento da memória negra e indígena, dentre outras coisas a partir da implementação de políticas migratórias seletivas e excludentes que tiveram como intuito o branqueamento da população brasileira. De modo a qualificar a continuidade da discussão, sugeriu a convocação de representações que trabalham diretamente com o tema de política socioeducativas e penais no âmbito das secretarias de Justiça, para também participarem desse espaço e dar continuidade ao debate.
“Ressignificar não é apagar ou deixar de reconhecer o racismo, mas compreender que questionar faz parte da luta antirracista e anticolonial. É preciso contextualizar, de forma que as pessoas compreendam e reconheçam o papel dessas figuras,” finalizou.