Monica Baltodano pede que toda a esquerda trabalhe pela libertação da Nicarágua
Por Tatiana Py Dutra/ Revista Movimento
24 abr 2023, 15:49 Tempo de leitura: 7 minutos, 0 segundosTatiana Py Dutra/ Revista Movimento
O Brasil é, provavelmente, um dos países mais desinformados do mundo sobre a situação da Nicarágua. A imprensa nacional costuma tratar o governo Daniel Ortega como uma ditadura de esquerda – e a extrema direita, como um exemplo de tudo de pernicioso que esse campo poderia trazer para o país.
Lamentavelmente, as novas gerações nicaraguenses também estão fazendo essa interpretação. Foi o que explicou a historiadora Monica Baltodano, em reunião com parlamentares de esquerda realizada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS), na manhã de sexta-feira (14).
“Ele diz que é anti-imperialista e nós somos ‘los hijos de la perra’ do imperialismo”, comentou a comandante guerrilheira da revolução sandinista sobre a hipocrisia constante no discurso do ditador.
O encontro na ALRS foi o primeiro compromisso de Monica em visita ao estado. Recepcionada pela deputada federal Fernanda Melchionna, pelo líder do PSOL na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Pedro Ruas, e por integrantes do Comitê de Solidariedade ao Povo da Nicarágua, ela falou também para militantes de esquerda e lideranças da corrente Democracia Socialista, do PT.
A pedido de Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre, a ex-guerrilheira sandinista tentou explicar como Ortega, antigo companheiro de luta, transformou-se em um ditador sanguinário, responsável pela perseguição, tortura e morte de seus opositores.
Monica admitiu que havia rasgos de personalismo em algumas lideranças, mas que não se imaginava que ele se degeneraria e ainda com apoio de uma “burguesia sandinista”.
“Essa situação teve um elemento original: a reforma agrária e urbana [realizada ao longo dos governos sandinistas, de 1979 a 1990]. A reforma agrária nem sempre foi acompanhada da parte jurídica. As terras foram distribuídas aos campesina, muitas vezes sem escritura. Quando perdemos a eleição de 1990, essa papelada se organizou de forma muito rápida [para que não perdessem a propriedade], formando uma nova burguesia [na gestão Chamorro]. O governo começa a tomar medidas neoliberais, como privatizações de empresas norte-americanas que havíamos nacionalizado, como as bananeiras. Originalmente 25% das ações dessas indústrias seriam distribuídas para o povo. Hoje, não se sabe de quem são”, relata.
O corrompimento também abateu a velha Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Sem congressos, sem organização, nem mesmo direção nacional eleita, passou a ser um mero aparato partidário que fortaleceu a figura personalista de Daniel Ortega e hoje serve a ele e sua mulher e vice, Rosario Murillo.
EUA fecha os olhos
Ao vencer as eleições de 2007, Ortega assume o poder com um discurso popular mas assumindo uma política neoliberal que em muito agrada aos EUA, principal parceiro comercial do país, comprador de 60%da produção nicaraguense.
“Aos EUA interessava o livre comércio, ao livre mercado. Por isso, até hoje, com o governo cometendo crimes contra a humanidade, não há sanções contra a Nicarágua. Além da política econômica, eles dizem ser parceiros para combate ao narcotráfico e também na política migratória. A Nicarágua é o principal muro de contenção de migrantes do sul ao norte”, afirma Monica.
A situação foi fortalecendo uma oposição, que viria a ser o Movimento de Renovação Sandinista, que virou alvo de perseguições do governo federal. Enquanto Ortega posava de liderança esquerdista nas reuniões do Foro de São Paulo, encarcerava e torturava adversários políticos, reprimindo com violência as manifestações populares. A repressão foi aumentando de escala conforme se aproximavam as eleições.
“As eleições nacionais, para escolher presidente e deputados, ocorreriam em 2020-21. Quando chegou, todos os sete candidatos de oposição estavam presos. Só o Movimento de Renovação Sandinista teve 50 integrantes presos sem investigação ou julgamento, e muitos deles ficaram três meses desaparecidos. Assim aconteceu a suposta reeleição de Ortega, que recebeu 80% dos votos em uma espécie de teatro sobre liberdade eleitoral”, contou Monica.
As arbitrariedades do governo tinham o apoio da burguesia, a conivência dos americanos e o amparo da minúscula parte da imprensa que conseguiu sobreviver.
“O governo tem o controle dos meios de informação. Tudo o que eles não conseguem controlar, ilegalizam. A maioria das rádios e TVs foram fechadas. Os nicaraguenses se informam por canais de YouTube transmitidos por conterrâneos a partir da Costa Rica”, detalha Monica, acrescentando que mais de 3,4 mil organizações, de diversos setores, foram tornadas ilegais.
Na prática, resume Monica, as liberdades individuais foram ficando cada vez mais restritas conforme avançavam os anos do governo Ortega. Mas especialmente a partir de 2018 a população em geral passou a ser afetada pela repressão:
“Todas as garantias de direitos foram suspensas, inclusive a liberdade de reunião. Mesmo uma festa familiar ou de aniversário pode ser interrompida. Se tiver mais de 10 pessoas, um agente pode pedir que o aniversariante comprove com documentos a data de nascimento. Parece uma novela de terror, mas isso está acontecendo”.
A imprensa calada e a criminalização das manifestações populares tiveram efeito cumulativo durante a pandemia de Covid-19, que matou apenas 500 cidadãos nicaraguenses, de acordo com Ortega.
“Foram pelo menos 17 mil mortes ocultadas. Os atestados de óbito, inclusive, mencionavam como causa outras doenças, como pneumonia, cardiopatia. Durante o isolamento, os médicos que tentaram fazer trabalhos de esclarecimento foram punidos pelo Ministério da Saúde”, diz Monica.
Caravana
À noite, o auditório da Faculdade de Economia da UFRGS ficou lotada para ouvir o relato da comandante guerrilheira. Na ocasião, Monica destacou a necessidade de que o mundo conheça a cruel realidade do povo nicaraguense e que especialmente a América Latina se posicione contra Daniel Ortega.
“Tenho esperança que os governos da esquerda latino-americana reconheçam os crimes de lesa humanidade cometidos pelo governo de Ortega. Precisamos de manifestações dos governos progressistas do Sul para que não fique a cargo de Washington a busca de soluções para ajudar a Nicarágua a sair de situação tão grave”, disse Monica.
Integrante do Comitê de Solidariedade, a nicaraguense Ana Mercedes reconheceu o apoio do MES/PSOL na divulgação da questão, mas destacou a necessidade de ampliar esse debate para toda a esquerda brasileira.
Segundo ela, o Brasil se abriu a possibilidade de acolher nicaraguenses, mas ainda não está claro como. Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda não se posicionou de forma flagrante contra Daniel Ortega.
“Quanto mais se apoia Ortega, mais se enterra a esquerda da Nicarágua. Porque para os jovens militantes do Brasil, esquerda e sandinismo são [sinônimos]. Se Lula o apoia, eles dizem, ‘Viu, Ortega é de esquerda’”, comenta Ana Mercedes.
Presente ao evento e convidada a fazer parte da mesa, Fabiana Sanguinetti, do PSTU, manifestou a solidariedade “aos trabalhadores, aos jovens e ao povo pobre da Nicarágua”, país que serviu de inspiração para grandes lutas da esquerda latino-americana e da própria Frente Popular que levou o PT ao poder no Brasil. Por tudo isso, ela se disse contrariada com a postura ambígua e pouco comprometida do governo Lula quanto à questão.
Também integrante do Comitê de Solidariedade ao Povo da Nicarágua, Antônio Neto destacou reuniões que Monica teve, desde a chegada do Brasil, com instituições e nomes progressistas, como Frei Betto e padre Júlio Lancelotti. Aproveitou para reforçar a importância da união em prol da liberdade da Nicarágua: “Essa responsabilidade de apoiar a Nicarágua não pode ser de um só partido, de uma só corrente ou um parlamentar, mas de toda a esquerda”.
Atividades
A agenda de Monica no Rio Grande do Sul ainda incluiu uma visita a Escola Josué de Castro, que fica em assentamento do MST em Viamão, na região metropolitana, na sexta-feira. No sábado, a nicaraguense participou de um café da manhã interreligioso promovido pela Igreja Anglicana em Porto Alegre, uma almoço com o ex-ministro da Justiça e ex-governador Tarso Genro e convidados, e num encontro com comunidades eclesiais de base em São Leopoldo, no Vale dos Sinos.